De manhã, quando o hábito observa o sol rompendo o céu, eles se olham em meio aos lençóis de tom pastel, um olhar cor de cansaço aperta o botão do celular que toca uma musiquinha irritante. Nenhuma palavra trocada, ambos detestam conversar quando acordam.
Lava o rosto com sabonete esfoliante e se observa diante do espelho, o cabelo já está vermelho desbotado, quase laranja, a unha por fazer, a beleza tão desgastada quanto o amor.Ele prepara o café da manhã, a cozinha abre-se para os cheiros invasivos do dia que principia, o dejejum acompanha o mecanismo do silêncio e há um abismo entre eles, permeando o campo da introspecção dos dizeres.
Eles deixam a casa e seguem para seus trabalhos. Ela lida com o giz de cera, com as palavras e com as cabeças com tantas sentenças. Ele segue com seus códigos, leis e petições. Na hora do regresso, ele liga a tv na sala com um volume alto demais. No quarto de estudos, ela prepara a aula do dia seguinte e corrige textos. Mais tarde , ele coloca a música espanhola do seu mp3 e repousa sobre o travesseiro, lançando seu pensamento em direção ao teto, rompendo-o, cimento, tinta e cal. Os cílios querendo descansar, mas hesita e chama:
- Marília, vem deitar!
- Já vou!
E vai com os pés e pensamentos arrastados, pega o livro na cabeceira e começa a invadir um universo que não é seu e é logo interrompida.
- Marília, quantas noites você vai fazer a mesma coisa? Estou cansado de toda noite você se esconder no seu trabalho ou nos seus romances! Se você não está feliz a gente acaba, mas não finja que não tem marido, eu existo, tenho vontades!
-Engraçado Aurélio, só você tem vontades e as minhas não existem? Você quer que eu me entregue, que eu prenda o choro por amor se este se transformou em um bom dia que nem sequer nos damos? Você quer que eu me anule? Só eu tenho que ceder, é isso?
- Alguém tem que ceder!
- E esse alguém tem que ser eu?
- O problema é com você, é você que se esconde, foge, enfia a cara nos livros e esquece que eu existo. Ei, eu existo!
- O problema é comigo? Você que se transformou em um ser mecânico! Cadê a poesia, os versos, o perfume, a cor, o sabor? Você não se preocupa mais em me agradar, não há mais tempero, Aurélio!
- Tempero, é isso que você quer?
Ele abruptamente, aperta sua nuca enche a mão com seus cabelos, joga o livro para fora da cama e a beija, a ama e deseja e cala e ama e beija.Ela chora e se entrega...
O romance com as páginas abertas ao chão é o mesmo romance que abriga a cama e o teto, o amor é lugar comum, é a falta de liberdade que liberta, é o bom dia que se alardeia nas frestas da janela entreaberta.
(Juliana Trentini)
Aperitivo poético do dia:
Domino o impulso de sair
para fora da vida
para entrar cada vez mais nela.
O sopro que apaga a vela
reacende a chama.
(Carpinejar)