sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Lugar comum




De manhã, quando o hábito observa o sol rompendo o céu, eles se olham em meio aos lençóis de tom pastel, um olhar cor de cansaço aperta o botão do celular que toca uma musiquinha irritante. Nenhuma palavra trocada, ambos detestam conversar quando acordam.



Lava o rosto com sabonete esfoliante e se observa diante do espelho, o cabelo já está vermelho desbotado, quase laranja, a unha por fazer, a beleza tão desgastada quanto o amor.Ele prepara o café da manhã, a cozinha abre-se para os cheiros invasivos do dia que principia, o dejejum acompanha o mecanismo do silêncio e há um abismo entre eles, permeando o campo da introspecção dos dizeres.



Eles deixam a casa e seguem para seus trabalhos. Ela lida com o giz de cera, com as palavras e com as cabeças com tantas sentenças. Ele segue com seus códigos, leis e petições. Na hora do regresso, ele liga a tv na sala com um volume alto demais. No quarto de estudos, ela prepara a aula do dia seguinte e corrige textos. Mais tarde , ele coloca a música espanhola do seu mp3 e repousa sobre o travesseiro, lançando seu pensamento em direção ao teto, rompendo-o, cimento, tinta e cal. Os cílios querendo descansar, mas hesita e chama:



- Marília, vem deitar!

- Já vou!



E vai com os pés e pensamentos arrastados, pega o livro na cabeceira e começa a invadir um universo que não é seu e é logo interrompida.



- Marília, quantas noites você vai fazer a mesma coisa? Estou cansado de toda noite você se esconder no seu trabalho ou nos seus romances! Se você não está feliz a gente acaba, mas não finja que não tem marido, eu existo, tenho vontades!



-Engraçado Aurélio, só você tem vontades e as minhas não existem? Você quer que eu me entregue, que eu prenda o choro por amor se este se transformou em um bom dia que nem sequer nos damos? Você quer que eu me anule? Só eu tenho que ceder, é isso?



- Alguém tem que ceder!



- E esse alguém tem que ser eu?



- O problema é com você, é você que se esconde, foge, enfia a cara nos livros e esquece que eu existo. Ei, eu existo!



- O problema é comigo? Você que se transformou em um ser mecânico! Cadê a poesia, os versos, o perfume, a cor, o sabor? Você não se preocupa mais em me agradar, não há mais tempero, Aurélio!



- Tempero, é isso que você quer?



Ele abruptamente, aperta sua nuca enche a mão com seus cabelos, joga o livro para fora da cama e a beija, a ama e deseja e cala e ama e beija.Ela chora e se entrega...



O romance com as páginas abertas ao chão é o mesmo romance que abriga a cama e o teto, o amor é lugar comum, é a falta de liberdade que liberta, é o bom dia que se alardeia nas frestas da janela entreaberta.


(Juliana Trentini)


Aperitivo poético do dia:

Domino o impulso de sair
para fora da vida
para entrar cada vez mais nela.
O sopro que apaga a vela
reacende a chama.

(Carpinejar)

7 comentários:

  1. Fiquei sem palavras...
    Muito verdadeiro.
    Acho que todo casal passa por isso.
    E é necessário tempero, perfume, sabor, cor, dor. O amor precisa de uma sacudida, para não virar irmandade.

    Tô boba com o retrato que você fez de um casal próximo. Muito igual!!!

    :*

    Tô orgulhosa, viu?
    Ta mandando bem nas palavras!!

    :)

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  2. Anchella Monte diz:

    " Até parece os dois daqui de casa, mas com diferenças básicas. Anchella não discute relação, acha terrível. E muito menos poderia solicitar posturas românticas, acha isso insuportável. Mas gostei do conto. Beijo da mamãe."

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  3. Menina, vc escreveu esse texto pensando em mim, foi? Até o vestido branco esvoaçando durante a minha fuga combinou...
    kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

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  4. Pois eu bem cobraria posturas românticas, pq acho que sem elas não dá pra manter um relacionamento. Vai ver, é justamente por isso que os meus não costumam durar tanto, né?

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  5. belíssima texto, Juliane. você é uma escritora muito talentosa, de rara sensibilidade. seus textos são de uma leveza impressionante, que nos toca, nos envolve e nos devora, capazes de nos arrancar lágrimas, de tão tocantes que são. suas palavras, sempre muito suaves, escondem uma força fora do comum.

    parabéns, mais uma vez, e continue assim, seguindo seu caminho, escrevendo com essa sensibilidade que lhe é nata, que, mais cedo ou mais tarde, seu talento será reconhecido, mais do que já é.

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  6. cheguei até aqui via anchella monte( lecionamos juntos), esse talento é genético?creio que sim!
    voltarei mais vezes.parabéns pelos belos textos! saúde e sorte! tertu

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