sábado, 31 de outubro de 2009

Matéria de poesia


A horta de Maria e o caminho das violetas

Sobre Minha Senhora De Mim e Livro de Mágoas


A poesia colhida dos versos de Maria Teresa Horta é uma poesia mais liberta tanto no que diz respeito à forma quanto no plano do conteúdo. A poeta revoluciona o caminho trilhado pelas mulheres ao romper com a opressão machista, retratando em seus poemas a sensualidade presente no universo feminino. O erotismo passa a se apresentar sem amarras, não há medo de expor os desejos da mulher que por muitos anos foi tolhida, impelida de mostrar que também é habitada por anseios carnais. Há perceptivelmente um tom autobiográfico no livro Minha Senhora De Mim, observável na utilização acentuada da primeira pessoa, percebe-se ainda uma personalidade poética que se governa, que comanda o seu caminho, suas vontades e até mesmo os seus lamentos, estes conformados, exprimindo a necessidade de seguir adiante, mesmo quando a tristeza acomete.

Fazendo um paralelo com Florbela Espanca, temos então duas poetas (ou poetisas) portuguesas que abriram o caminho para a participação feminina de uma maneira geral, pois desobedeceram regras sociais que ditavam o comportamento das mulheres, lutaram por suas vontades, ideias e desejos. Mas em Florbela, o amor é um sentimento que se revela mais opressivo, doloroso, e o erotismo é pouco evidente; suas poesias são carregadas de um tom autobiográfico, a primeira pessoa está presente em quase todos os sonetos. O caminho das violetas mostrou-se em um livro cheio de mágoas e medos, medos estes que fizeram Florbela não suportar o desamor e ceder à tentação da morte, precocemente.

Em matéria de poesia o livro Minha Senhora De Mim, de Maria Teresa, é um grande marco na poesia contemporânea feminina. Maria João Reynaud in Vozes e Olhares no Feminino diz: “ Nesta obra poética, marcada por uma invulgar coerência, espelha-se uma concepção de poesia profundamente intimista e feminina, alimentada pela crença no amor único e recíproco, como uma forma absoluta de negar a violência da morte e a inconstância dos afetos humanos.” E é essa linha intimista que acompanharemos em versos:

Minha senhora de mim

* O título apresenta dois pronomes, o “minha” e o “mim”, passando a ideia de posse de controle de si mesma:

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

* Nessa primeira estrofe mostra a imposição de suas vontades, briga interiormente com os moldes da senhora que costuma se apresentar perante a sociedade e se desentende com ela mesma para desobedecer às regras impostas.

sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço

* Os dísticos estão em lugar de contraponto, exprimindo uma imagem forjada.

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

* Mostra o ponto de vista feminino e feminista.

(...)

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

* Exibe o estereótipo de mulher da época e se opõe como se dissesse: “eu quero ser dona de mim!”.

recusando o que é desfeito
no interior do meu peito

* Mais uma vez os dísticos aparecem em contraponto, formando uma tensão estética em que relata o desejo de se recusar as imposições, ser livre, ser senhora de si.



Já no intimismo de Florbela, percebemos uma entrega. Entrega diante das impossibilidades, uma tristeza infinita, um desgosto imenso, uma amargura, no entanto, não há nenhum movimento, nenhuma ação, sucumbe na incompreensão dos percalços da vida.

Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

(...)

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!


O eu lírico não consegue reagir, desnorteia-se, não encontra saídas nem caminho para seguir por não ter sido encontrada por seu amor. Diferentemente da poesia de Minha senhora de mim, que se governa, que rejeita as imposições. A poesia de Florbela exprime um leque de amores que viveu, mas sem achar aquele com o qual sonhava; já em Maria Teresa, vivenciamos algo realizado, ressaltando o pulsar sexual que também se faz presente na alma feminina. No poema Ponto de Honra:


Não sou escrava
de lamento
nem tento ferida
de enfeite

nem uso a raiva
que tenho
como um alfange
no peito

(...)

e não quero aneis
de aceite
para enfeitar os meus olhos


O título já começa por afirmar que o eu lírico não abre mão de suas vontades; na primeira estrofe diz que não usa o sofrimento para chamar atenção, para se fazer de vítima e em seguida que também não há de utilizar a raiva como arma, como faca para destruir os outros, não utiliza sentimentos negativos para passar melhor e por fim diz que não quer enfeitar o rosto de olheiras para se mostrar mais sofrida do que outros, não. Sua honra está em superar a tristeza, a dor e não de utilizá-las em nome de uma estética de martírio.

No Livro de Mágoas, a poesia A Minha Dor vem ilustrar o sofrimento de maneira bem diferente da poesia Ponto de honra do livro Minha Senhora de Mim:



A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.
(...)

Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve ... ninguém vê ... ninguém ...



É uma dor opressiva, que consome, que corta feito alfange no peito, embora o eu lírico não tenha o intuito de se fazer de vítima, é consumido e desmanchado pela solidão, pelos tons sombrios, pela elegância de se massacrar um ser e mantê-lo enclausurado, preso em silêncio, tal qual um convento, onde o pranto, o tormento, a melancolia ilustram a cena, mas ninguém percebe, ninguém reconhece, ninguém vê.

Do pouco que ilustramos aqui, podemos perceber que ambas as poetas falam do sentimento feminino e do amor, porém uma segue uma linha depressiva e a outra libertária. Uma poesia de morte e outra de vida, mas ambas povoam o pensamento de quem lê, e o leitor colhe o verde da horta de Maria e o roxo das belas flores poéticas de Florbela.



(Juliana Trentini)

2 comentários:

  1. belíssimo e esclarecedor texto, Juliana, como sempre.
    lamentável ser a Maria Teresa uma poeta (ou poetisa, como querem alguns) ser tão pouco conhecida (e falada) em nosso país. a Florbela Espanca é mais conhecido, mais lida, sem dúvida, mas mesmo ela ainda é pouco conhecida e lida, tamanha a beleza de suas palavras.

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  2. Olá querida amiga.
    Obrigado por apresentar de modo tão didático-poético, esta poeta Maria Teresa.
    Florbela já é companheira de outras datas, desde que o cearense Fagner musicou FUMO, que fiquei encantado por sua poesia.
    Uma linda semana para ti.

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