domingo, 25 de outubro de 2009

Verde







Verde de todos os tons possíveis e imagináveis, uma alegria frutífera para esconder as angústias do seu passado, passado este que daria um bom romance carregado de amor e dissabores. Não posso esquecer do cheiro, a colônia que usava também tinha a mesma cor dos objetos da sua casa, era verde, porém escuro, Mauá.

Mas por que falar no passado? O tempo verbal é algo que sempre me confunde, nunca sei a medida certa para encaixar os fatos em sua cronologia, se foi, é ou será... eu não sei, nunca sei...Kronos e as regras gramaticais me odeiam, na verdade não sei lidar muito bem com regras, fujo sempre de tudo que queira limar minhas atitudes, ideias, vontades, dizeres e verbos presentes, passados, futuros. Eu apenas quero verbalizar uma imagem que está presa, em cárcere privado na minha memória e a partir do momento em que eu libertá-la, ela deixará de ser só minha e ficará a critério de vocês descobrirem em que lugar do tempo foi estacionar.

A única certeza que tenho é a dos sentidos, principalmente visual e olfativo, não preciso mais falar da cor, pois esta foi sempre igual, não. É mentira! Ela já experimentou o cinza quando se viu sozinha com seus filhos pequenos, o marido nos tempos da ditadura sendo levado naquele carro em meio a tantas armas e silêncio, sem nenhuma explicação. E as cores que viu: O azul dos olhos dele que representavam um vazio imenso, talvez de medo ou de abandono e ela ficou inerte naquela mistura de tons.

Passou. A ditadura acabou e os filhos cresceram. Ele deixou seus aviões e ela o deixou depois de meio século e mais um pouco de convivência. As mudanças bruscas são ainda mais doridas quando não se é jovem e ela sofre alegremente, com um sorriso meio desorganizado e uma voz cheia de coros evangélicos que entoa afinada. Mas a imagem que está presa, que vou abrir o cadeado nesse momento sem tempo verbal exato, é que quando ela está tudo cheira. A casa tem cheiro verde, do louro no feijão, do coentro, da cebolinha, dos objetos, da colônia que deixou de ser Mauá... Quando ela está, o mundo abre-se para as cores mais diversas do que as pinturas que ela conserva em telas e presenteia para seus filhos e netos, a minha tela é um mar, VERDE, com uma jangada solitária vagando por entre as ondas, passeando o olhar sobre os coqueiros e o céu com tons amarelos da luz do sol. Eu me pergunto: essa vela, sou eu ou ela? Creio que é apenas uma tela feita com amor para enfeitar o meu quarto e nós vamos nos guiando sozinhas de acordo com o vento que embaraça sempre os meus cabelos e os olhos quase verdes e sem cor certa liberam as imagens que projetam em sua mente fértil, do solo mais fértil ainda que é esta epopéia de vida.

(Juliana Trentini)







4 comentários:

  1. Nossa... :~~~~
    ( Chorinho básico)
    Fiz uma viagem no passado. O perfume mauá, posso senti-lo.
    O diário de vovô.

    Fiquei sensível agora.

    Vovó é o sorriso da casa. Seja desta, daquela. :)

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  2. parabéns pelo texto. você tem uma sensibilidade ímpar, tem o dom de usar as palavras e mexer com os sentimentos que nos fazem voar, nos sentir livres como são os pássaros no céu numa manhã de primavera.
    viagem ao passado, ao presente ao futuro, para dentro de nós, para aflorar os nossos mais belos e sublimes sentimentos, para libertar a nossa sensibilidade, a nossa maneira de ver e de sentir o mundo.

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  3. a sensibilidade está contida no seu comentário Neto, muito obrigada pelas palavras!

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  4. O passado existe ao lado do presente. Ao sabor da vida vai e vem, com um barco ao sabor das ondas.
    Este texto merece ser lido mil vezes, pois é daqueles que a cada leitura nos traz algo novo, escondido nas entrelinhas.
    Lindo final de semana para ti.

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