terça-feira, 26 de maio de 2009

Parte, reparte em partes

Estudou a vida inteira em escola cooperativa, aprendeu a repartir o pão, o vinho, o carinho, os anseios e a arte. Ela era uma concha que escondia o tesouro e como mecanismo de defesa se fechava.

Um dia resolveu entregar os pontos, as pérolas, as conquistas, as derrotas. Entregou-se demais, a ponto de ser pedra, transparente e reveladora, óbvia demais. Lutou por tudo e por todos, sempre voltava cheia de arranhões para casa e nenhum troféu, sempre brigou por tudo que acreditava e não recebeu nenhuma medalha por isso.

Hoje coleciona desafetos e medos, anseia encontrar um verbo no infinitivo e se acha anti-romântica, lamenta as perdas, mas assim como Lia Luft compreende que com as perdas só há um meio, senão perdê-las...

Desenrola as ondas marítimas e faz de seus cabelos vento no litoral, refresca-se ao olhar o sol nascer na cobertura, sente saudades do amigo que acompanhava a mudança temporal junto a ela e nada fazia, sente falta de pessoas sem coragem, sem coragem de ser o que são por amor.

Sente falta dos insetos rodeando a casa, sente falta do cachorro que não lhe correspondia o afeto e assim mordia e a fazia sangrar, ele era preto e peludo, ela ainda sente a falta dele com seus olhos de catarata e de carência afetiva;

Ela sente falta do amigo que a presenteava com tocandiras mortas; ela sente falta do que não viveu, ela tem saudades de algo que ainda não conheceu;

Coloca os sapatos novos e descola a palmilha, seus pés são tão inquietos que destroem o espaço e o caminho, e a ela só restam as folhas secas e iguanas que observa aos finais de semana, só resta ser poesia e ser passagem; imagem e fonema; excesso de carga mental e excesso de poeira cósmica. É um livro de mágoas cheio de felicidade, sofrer faz parte de repartir em partes as páginas do monólogo que é viver.

Quer um pedaço da fatia? Sou doceira... ter diabetes faz parte da parte de um todo, fração.



P.S:. Desculpem-me os erros...sem ninguém para corrigir.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Estranheza

Tudo é cultural, tudo é estranhamento. Os fins e os começos são apenas meios, meios de se estabelecer uma organização definida, repartida, compartilhada e nomeada. Alguns chamam de companheirismo, outros de amizade, outros de amor, outros de paixão ou pode ser tudo misturado, ou pode ser nada, ilusão, pó.

O poeta é tão ilusionista que ele expõe o que quer. A verdade é a forma de ludibriar o que está nas entrelinhas, o mistério não é segredo, é o sobretudo que protege o corpo do frio no inverno e ainda tem um certo charme, o ser que escreve é só mais um medroso, porém melindrosamente deposita seus medos de maneira organizada e carrega a cruz e sangra e renasce.

Morre todos os dias, pega a vassoura, a pá e junta a poeira e deposita no lixo mental, filtra as palavras e o sumo vira verbo, verso, vento, visão, voz...

Alitera os recursos de ser humano, entender o plano sensível não é chorar, é entender que a palavra não é apenas mais uma palavra, é um jogo, uma cena. E se jogamos diariamente com as articulações verbalizadas, imagine as sensoriais, as corpóreas.

O estranhamento é poesia crua que se veste nesse cotidiano ordinário e quem estranha faz piada do sofrimento quando na verdade é só mais uma pessoa cheia de fraquezas. E de tanto andar na corda bamba, cai no samba e compreende que quem escreve, sonha e dança, é deveras mais feliz.

De sonhos e de chuvas

A chuva deu uma trégua para anunciar a chegada da noite, ainda assim, reservou-se ao espaço cúbico e não quis violar olhares estranhos e nem conhecidos. Desventrou as palavras do silêncio, rasgando os azulejos brancos com os pés, cultivou os calos, escorregou no piso molhado da varanda e viu a cidade acesa mais uma vez gotejando do céu chuvas e sonhos.

Observou o vasinho pobre com flores implorando por água que sempre se esquecia de regar. Enquanto o céu desabava tanta abundância lá fora, entrou , encheu o copo com água e saciou uma sede que não era sua e sentia ressecar os lábios, tinha muita sede e não era de água.

Não sabia qual era a sede que tinha, viu a barra de chocolate meio amargo na geladeira, saciou uma sede que também não era sua, era corpórea, forçada, carnal. Entrou no quarto, viu um presente na cama, um cd de Marisa Monte. Não sabia quem a tinha presenteado, mas sabia que era seu; colocou no som e saciou sua alma, a alma tolhida de medos só tinha uma sede ou duas: De amor e de sonhos, ela é chuva que molha os guarda-chuvas alheios e abranda a cidade que abriga desejos dominicais.


Aperitivo poético:

Sonho vago

Um sonho alado que nasceu um instante,
Erguido ao alto em horas de demência…
Gotas de água que tombam em cadência
Na minh’alma tristíssima, distante…

Onde está ele, o Desejado? O Infante?
O que há-de vir e amar-me em doida ardência?
O das horas de mágoa e penitência?
O Príncipe Encantado? O Eleito? O Amante?

E neste sonho eu já nem sei quem sou…
O brando marulhar dum longo beijo
Que não chegou a dar-se e que passou…

Um fogo-fátuo rútilo, talvez…
E eu ando a procurar-te e já te vejo!
E tu já me encontraste e não me vês!…

Florbela Espanca - Charneca em Flor



Meu aperitivo:

Procurei guerras
Fiz da minha voz munição
O choro,
Foi apenas mais uma canção
Perdida entre as balas perdidas

Entre mortos e feridos
Sobrevivi
Para colher os destroços do caminho
E fechar os cortes escritos em mim.


(Juliana Trentini)

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Resenha livresca





Há pouco tempo terminei de ler A insustentável leveza do ser de Milan Kundera, é um romance erótico que revela os conflitos humanos no que diz respeito ao amor, ao sexo, a fidelidade e ao companheirismo; também sentimos por meio dos personagens a dificuldade e a importância de se fazer escolhas definitivas e irreversíveis. Confesso que tinha certo preconceito com a literatura erótica e ainda tenho, mas Milan Kundera aborda a sexualidade com uma maestria que o livro nos consome junto aos tantos conflitos existenciais e uma movimentação psicológica que não anda em círculos.

Outro livro que me faz acreditar que existem romances eróticos substanciosos é “Um copo de cólera” de Raduan Nassar. Livro que tem uma abordagem descritiva tão vivaz que nos faz invadir a casa do personagem e sentir o envolvimento amoroso e sexual dos dois ao mesmo tempo em que suas personalidades e vontades se chocam, mostrando a dificuldade de se manter o relacionamento. São dois livros imperdíveis.


O aperitivo poético do dia foi inspirado em Um copo de cólera.




Cotidiano


ele fumava
e projetava imagens
ao lado
a xícara colorida
um café saboroso

ela chorava discretamente
escondia seus medos entre guardanapos

ele plantava o verde
e colhia o adubo
ela plantava o fruto
e colhia a semente

ele estrada batida
ela asa torta
ele casa
ela palavra solta

Ele via o tempo passar na janela
Ela, ela sofria.


(Juliana Trentini)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Acontecimentos Notívagos

Diálogos arrastados, pessoas cansadas de uma noite regada a música boa e algumas doses poéticas verbalizadas e em um outro espaço alguns engoliam doses de cachaça e se estendia um outro diálogo infrutificado, a famosa “ conversa jogada fora”.

O tempo passava devagar, alguém observava o ambiente ao redor e volta e meia falava alto ao telefone, esquecendo-se da boa educação ria exageradamente com as novidades recém chegadas graças à telefonia móvel. Fim de ligação: Risos silenciosos e internos e o retorno para o foco anterior: O ambiente. Um espaço bonito, musical e aconchegante, carregando um grande defeito- o cheiro de cigarro! Uma voz interrompe a descrição mental do ser que observa e diz: - Vamos? E foram todos, invadir outro espaço.

Segundo ambiente: Uma casa pouco reformada transformada em um bar, nele estavam pessoas que não tinham mais para onde ir e não queriam voltar para suas casas, amanhecem assim tomando caldo e cervejas. Duas mulheres sentadas à mesa, uma boceja com muito sono, a outra apenas observa e pensa no dia de trabalho que a espera. Mais uma vez a quebra de silêncio: - Vocês querem ir pra casa? Quiseram!

No caminho, mais uma pergunta- dessa vez não rompeu o silêncio e sim a trilha sonora ( música dos anos 80 se não me engano)- o narrador também esqueceu o nome da banda, mas isso é apenas detalhe... de volta a pergunta: - Você é romântica? Ela: - Não! Ele: - Que pena, pois eu sou muito romântico. A amiga desceu do carro, eles seguiram e assim seguiu o dia inaugurando o sol de domingo que seria Florbeleril ( isso é um neologismo com intuito de dizer que o dia estaria para Florbela Espanca- chuvoso – roxo - melancólico).

Chegou o momento Teletubbies – É hora de dar tchau!- No entanto, foi interrompida novamente, dessa vez por um beijo que já não esperava. Graças à Eriberto - O porteiro -, conseguiu se desvincular de uma situação anti-romântica com alguém supostamente romântico. Seria ele mesmo romântico? Ela pensou que não e pensou também ela ser a contradição de tudo que acredita ser. Subiu as escadas e foi conversar com Morfeu e pedir a Deus um bom dia de trabalho.

domingo, 10 de maio de 2009

Mãe e filha



Homenagem para minha mãe querida e inspiração diária:


Ela tinha quase trinta anos e se achava velha, velha demais para ser mãe novamente, mas por descuido ou por destino (isso não se sabe) acabou engravidando pela terceira vez. Já tinha um casal, dessa vez pôde saber o sexo pela ultra-sonografia e seria a primeira a usar fraldas descartáveis, era uma menina.

Na semana do parto... uma notícia: a médica que havia acompanhado toda a gestação não poderia se fazer presente pois estava com catapora; a mãe quase que enlouquece, estava velha, não tinha a médica em que confiava e não queria outra filha, não queria mesmo.

Tarde de dezembro, a menina nasce. Branquela e magrinha e com ela nasceu também uma rejeição. A mãe disse categoricamente: “Nem me mostre, não quero nem ver essa menina!”. A mãe havia sofrido muito no parto e carregaria conseqüências físicas para o resto da vida. A avó enchia a menina de cuidados, roupa amarelinha e cheirosa, colo e beijinhos enquanto a mãe olhava o vazio e rejeitava.

No dia seguinte, ensolarado (assim como são de praxe as tardes de dezembro)... A mãe arrependeu-se e disse: “Dê-me aqui a menina”, seria Júlia seu nome, mas esse era o nome da vizinha chata, então acabou ficando Juliana. A rejeição durou apenas um dia e a mãe lhe recompensaria a vida inteira... melhores amigas, companheiras, amantes das palavras. Mãe poeta, filha aprendiz.

Se for para ter esse tipo de recompensa, desejo ser rejeitada muitas outras vezes, desejo sim!





Aperitivo poético:

O rio no quintal

Havia um rio no quintal da casa
Morria de medo de acordar meio sonâmbula
Cair no rio e me afogar.
A casa pequena e aberta
Dava para tudo: a escuridão da noite
Os murmúrios dos bichos desconhecidos
Os pontilhados dos insetos invasivos.
A casa abria-se para o rio de águas turvas.

Havia um rio no quintal da casa
Rio que via quando a manhã chegava
De areia grossa escura e pegajosa.
A casa pequena e aberta
Dava para tudo: a claridade do sítio
As caras simpáticas dos animais domésticos
Os coentros e cebolinhas aéreos e cheirosos.
A casa abria-se para o meu coração temeroso.

Minha mãe pingava limão no suco de caju
Meu irmão corria do porco que corria do cachorro
Minha irmã de olhos negros chorava por tudo
E gostava de ouvir histórias.
O rio estava lá no fundo do quintal
Bastava andar um pouquinho
O rio estava lá logo depois do varal
Onde brilhavam as nossas camisolas alvas.
Quando dormia via o rio no sono

Murmurejante e espesso, encrespado de chuva
Me revolvia assustada o rio querendo me levar.

"Mamãe, mamãe,
Vem, me salva!"

Colo de mãe é mais que rio
É mar.

(Anchella Monte)




Triste aperitivo:

Incompreensão dos Mistérios

Saudades de minha mãe.
Sua morte faz um ano e um fato
Essa coisa fez
eu brigar pela primeira vez
com a natureza das coisas:
que desperdício, que descuido
que burrice de Deus!
Não de ela perder a vida
mas a vida de perdê-la.
Olho pra ela e seu retrato.
Nesse dia, Deus deu uma saidinha
e o vice era fraco.


(Elisa Lucinda)





Meu aperitivo poético:

Mãe e Filha

Ela não usa mais a máquina de escrever
( a datilográfica)
Sinto falta
Do barulho que peregrinava
Horas a fio
Somado a goles de café forte
E amargo
Acompanhado de inspiração
Claramente perceptível
Pela intensidade trabalhada pelos dedos.
Eu menina curiosa
E companheira
Rodeava a sala
Por vezes interrompia seus pensamentos
Pacientemente me dava papéis de rascunho
Desenhava sereias e barquinhos
-gostávamos do mar.
Um dia descobri as palavras escritas por minha mãe com veemência
E euforia.
Gostei.
Ainda criança aprendi do meu jeito a fazer o mesmo.
No entanto arcaica
Enquanto ela datilografava eu escrevia manuscritos
Hoje
Mundo moderno
Ela digita
Com o tempo sempre corrido
Ela se habita em versos.
Eu sigo os seus passos
De maneira mais primitiva
Gosto de calo nos dedos
Gosto da letra feia no papel.
Somos mãe e filha
Ela é jovem
Eu sou antiga.

(Juliana Trentini)

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Retrato de um poeta

Não sou de muitas palavras, mas minha alma foi alagada por elas. Eu me jogo em páginas versificadas e fico ligeiramente imóvel quando tenho que falar diante de tantas faces rasgadas e interrogativas.

Dê-me um papel e uma caneta se me quer por perto, presenteie-me com um livro ou CD de boa música se quereres me conquistar, não me esconda o microfone (além da voz desafinada) esta se amplia em silêncio.

Jamais consegui compreender o tempo, não tenho boa relação com Kronos. Sou mortalmente condenado a passar por este rio, ser, calar e deixar de ser. Ele sempre corre na eternidade, eu singularizo e deságuo feito nada, feito estranho vocábulo com estilo peremptório e visceral.

Vou ser sempre o que me falta, a lacuna, o buraco no lugar dos olhos. E as vozes que não são minhas e ainda assim me acompanham é que vão proferir em alto e bom tom qual é minha cor de fato; sei que são duas as cores, uma sob o sol, outra sob o luar; cor de estrela e asfalto. Sangria de açude e pasto.


Aperitivo poético

O Rio Fechado

Como saber a água
Com que tempo

Como saber o lodo
Como saber do Tejo
todo
Se é tempo
assim porque um rio baço
não mede em sua água

Baço é um rio
quando é fechado
ou se fluiu
encadeado

Saber do tempo
se mede a sua água
e dessa mágoa
somente se fluiu
como se fecha um rio

(Fiama Hasse Pais Brandão)


meu aperitivo:

Retrato de um poeta



Os papéis manchados de café
demonstram a distração morta de seus dias

ele passa as páginas e segue a pé
atropelando cada palavra e tropeçando no vazio

está cansado de metáforas sobre o rio
mas sabe que é sempre
uma voz nova corrente nessa foz
percorre o trilho
mas não é trem
se joga no abismo e abre passagem para a inércia
sempre escolhe a coragem abandonando a prudência

viagem feita de escolhas
nem sempre acerta
falta açúcar e leite em pó
sobram respingos nos papéis de letra já desgastada
metáforas cheias de nada
de nada ser, tanto se é
retrato de poeta
repousa em uma estante qualquer


(Juliana Trentini)