domingo, 24 de janeiro de 2010

Estado




Hoje estou invisível como o fim do mundo
e se o fim do mundo existe realmente
ele é um oceano cheio de vida e de vindas
que vai-se sobre ondas embriagadas
as ondas arrebentam-se
na parede do meu edifício
o invisível mora em mim

(Juliana Trentini)



Aperitivo poético:

Nasci vingativo,
negando
o que deveria perdoar,

omintindo
o que deveria mencionar,
exagerando para soar falso

o que de verdade sinto.
Falsifiquei-me para que fosses
próximo do real.

Ao escapar de tua figura
me tornei igual.
Tudo está perdido, então.

tudo é necessário
sou a barca que fica
afiando as águas

(Carpinejar)
 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Amor de verão





Sinfonia de Beethoven. Os livros bagunçados na estante, sem tempo para deixar a casa em ordem. Fecha o apartamento às pressas, aperta o botão do elevador, a porta abre e o susto. Era ele. Aquele da adolescência. Das voltas de bicicleta nos dias quentes de verão, dos sorvetes de creme crocante, das tentativas frustradas de “pegar ondas” no mar esverdeado, era ele, o seu primeiro amor de quem há anos não tivera nem notícias.


Estava engravatado, mais gordinho, porém o rosto continuava o mesmo, um ar de moleque, "menino buxudo" e ruim. Saudades.

Ele a olhou interrogativo. Como se pensasse “a conheço de algum lugar”, no entanto, ela havia mudado demais, não tinha mais as pernas finas, nem o cabelo imenso sem corte e a cor já não era a mesma, a menina que foi está presa nos ladrilhos da rua do ontem, a mulher de hoje tem os pés no asfalto.

Chegaram ao estacionamento, um carro ao lado do outro e os olhos se encontraram. Se há algo que nunca muda é a veracidade do olhar. Ele pensou em dizer alguma coisa e nada disse. Ela deu um meio sorriso, entrou no carro e seguiu em direção ao portão. Sabiam que iriam se encontrar de novo. Ele olha para as mãos e lembra-se da união do presente, ele olha para frente e vivencia o passado por alguns instantes.

Saudade será sempre a palavra imutável.


                         (Juliana Trentini)





Aperitivo poético:



" Como antes, te espero para sair,

  suportando o atraso.

  Mas nada te trará novamente. Não serás devolvida."



(Carpinejar)


"Se eu te pudesse dizer
O que nunca te direi,
Tu terias que entender
Aquilo que nem eu sei"

(Fernando Pessoa)

sábado, 9 de janeiro de 2010

Cheiro de chuva






as estrelas se esconderam
o céu ficou vazio de luz
cheio de perfumes de chuva

a água vem trazer
todos os sonhos que escondi de você
porque se eu me revelasse por inteira
tu me abandonarias

me escondi tão bem
você não me viu passar
fui aquela estrela cadente
tardastes para fazer o pedido

cai
caiu o nosso amor
nublou
e o previsível aconteceu
a chuva lavou todos os nossos desejos


(Juliana Trentini)


Aperitivo Poético:

III
Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.

Baratas passeiam nas formas de bolo...

A casa tem um dono em letras.

Agora ele está pensando -

no silêncio Iíquido
com que as águas escurecem as pedras...

Um tordo avisou que é março.


(Manoel de Barros)



P.S:.  E olha que março nem chegou ainda, mas eu já sou mar sem ser água.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Sentidos


















Ando plantando silêncios
e colhendo refrão
ando sonhando uma canção
e ouvindo lamentos
sempre o ombro amigo.

mas eu quero dedos
voz e cansaço
quero fala
fato
terra, asfalto
algo

a alma não obedece
e tece nuvens
céu, asas sem metas
Eu sou Ícaro.

Juliana Trentini



Aperitivo poético:


Filosofía


(...)


No se saca nada volando
para escaparse de este globo
que te atrapó desde nascer.
Y hay que confesar esperando
que el amor y el entendimiento
vienen de abajo, se levantan
y crecen dentro de nosotros
como cebollas, como encinas,
como galápagos o flores
como países, como razas,
como caminos y destinos.


Pablo Neruda

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Dual




Ela prendeu-se a uma interrogação
Ele a amores vãos
Desencontros.

O olhar insistente
Diletante e teimoso
Desafia o acaso e rompe as impossibilidades

Eles se difundem nos contrastes
Como uma pintura barroca
Quadro sagrado e profano
Exibindo em tintas mais um desengano
Um amor lusitano.

Juliana Trentini


Aperitivo poético:

Destruição

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir mas o existido
continua a doer eternamente.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 3 de janeiro de 2010

Como Jó





Tece manhãs
Com arrependimento e exaustão
Os insetos dividem o espaço
Com os perfumes da solidão

De tanta fé cristã
Ela é pagã
Sucumbe em tantos pecados
Amaldiçoa o dia em que nasceu
Como Jó desenganado

Fecha as cortinas do passado
Toma remédio pra dormir
Gira como o ventilador de teto
Torna-se chão sem adubo
Solo infértil.

Juliana Trentini



Aperitivo poético:


Tristeza

A casa está silenciosa e eu triste
Dessas tristezas que não deixam dormir
Mesmo com muito sono.
Um abandono de ideias
Mau jeito nos dedos para tocar nas coisas.
Há uma lua linda no céu de fazer chover
E um choro que não me abandona.

Os filhos dormem:
Luz, amor, carinho.
E tenho a alma em desalinho.

Vigio e cuido da vida
Entre muros e madrugadas.
Tenho em cada janela
Uma passagem inesperada.

Chove finalmente
E o céu continua iluminado.
Meu coração perturbado
Tem vontade de sair.

- Vai, minha alma, passear por aí
sozinha na paisagem marinha
chorar sem mesmo sentir.
Vai, deixando amarrada uma linha
Que não venha a se partir.


Anchella Monte