quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

sobre três olhares








Presente para Silvia Lima:  





Realidade masculina


Estou cansado de tentar compreender o seu silêncio;  na verdade, é mentira, gosto até do que me inquieta no que diz respeito a você. Porém, observar os astros em um caleidoscópio com lentes embaçadas e uma leve ranhura que me impede de entender quais são as estrelas faz com que meu mundo não tenha órbita.

Até minhas palavras andam confusas, pouco coesas, com vírgulas encaixadas em lugares errados, muitas pausas para tentar ludibriar a agitação do meu sangue, e eu tento dominar o seu impulso de correr tão aceleradamente; no entanto, não há freio de mão para essa volúpia ardente, dominante tanto do corpo quanto da alma.

E observar você assim tão descrente dos meus sentimentos, risonha, cheia de luz é o que mais me incomoda e me deixa assim tão confuso. “Te ver e não te querer, é improvável, é impossível” e essa “bruta flor do querer” me faz ser prisioneiro de mim mesmo e habitar uma realidade conflitante, eu quero, mas não posso querer e vou me ausentando e ficando distante, quando na verdade o que eu quero é estar perto e assim quando me vejo estou coberto pelo seu olhar, abrigado no seu cheiro, segurando o seu quadril.



Realidade feminina


Não. Eu não me apaixono e ponto final. Sou aventureira, errante, não gosto de amarras, se o amor é livre, por que se prender a alguém? Não, eu não me apaixono. Há quem diga que isso é fuga, mecanismo de defesa, não concordo. Simplesmente é assim que acontece, aliás, tem acontecido ao longo desses anos todos de estrada. Mas eis que um dia todo o meu discurso de mulher irredutível foi por água abaixo, não porque me apaixonei, pois isso não existe para mim, a paixão, o amor e todas essas regrinhas bobas de classificar o sentimento são imposições que alguém criou, e quanta estupidez! Essa alegria triste que me habita não tem classificação, não pertence a um único nome, só sei que tudo se transforma quando o vejo e não consigo sequer descobrir qual a cor do seu olhar.

A única atitude possível para mim é observar e esperar, logo eu, que sempre fui tão impulsiva, inaugurei uma palavra que antes não existia no meu dicionário: “paciência”. E várias músicas aparecem como trilha sonora dessa novela mexicana sem os excessos que lhe são característicos. “Enquanto todo mundo espera a cura do mal/ e a loucura finge/que isso tudo é normal/eu finjo ter paciência (...)”, tudo bem, fingir é comigo mesma, sou atriz nata, mesmo sem ter pisado sequer em um palco na vida, mas me cansa, cansa e como cansa e observar você assim tão impassível é o que mais me dói, é nessas horas que tenho vontade de mandar a paciência às favas, o que adianta esperar se não sabemos se teremos esse tempo a perder... ai, Lenine, queria que ele prestasse mais atenção nessa sua música, mas o que falta para ele perceber? Talvez falte o verbo querer e eu permaneço nessa fraude do sorriso.

E eis que outra música se manifesta na minha cabeça [ai que saco! Não aguento mais musiquinhas romantiquinhas]. “Te ver e ter que esquecer é insuportável é dor incrível”. Tudo bem, apesar de ser mamão com açúcar, a canção tem razão, é insuportável, porém a maestria do disfarce feminino utiliza o olhar algoz e a força dos quadris para desfilar em sua direção e fazer de conta que o mundo ali é todo seu e que ele, o “desejado”, sequer existe.



Narrador-onisciente


Qual o sentido de querer o tempo todo fingir ser aquilo que não é? Sentir o que não se sente? Demonstrar a realidade oposta? Os personagens encabeçam um jogo de sedução sem propósito, pois são covardes e assim contraditórios, tal qual o amor ou paixão, e se nem eles sabem definir o que sentem, quem dirá eu, um mero narrador onisciente? Mas deixe-me mudar a forma do meu discurso senão acabarei me tornando narrador-personagem e eu não quero depositar meus sentimentos em uma história que não é minha.

Bom, essa é uma história que não vai ter fim e se chegar a ter, desconheceremos, pois o escritor parou por aqui, a única coisa que podemos saber é que dificilmente eles ficarão juntos devido a falta de coragem de ambos de enfrentar os seus dilemas, de abrir o jogo, de dar a cara a tapa, enfim, as razões não sabemos, mas eles permanecem nesse impasse por algum motivo e o possível caminho é o fim, de maneira crua, sem palavras e sem explicações, o que permanecerá é uma saudade dorida e um olhar arroxeado encoberto por um falso sorriso belo e cheio de luz.

Como dizia o poeta: “Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada não”.


(Juliana Trentini)


2 comentários:

  1. Ai, que emoção ganhar um post de presente! E conseguindo me descrever tão bem, que chega a dar medo. Nem precisa dizer que adorei, né?
    Te amo, minha galeguinha!

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  2. Tô manteiga derretida ao cubo... chorei, mas é digno de emoção mesmo. O que mais me "doeu " foi saber que o fim é certo, sem tentativas, sem o ' tente outra vez ' que meu Raul ensinou.
    Ai se eu pudesse abria a cabeça desses dois...!

    Torço para um final com jeito Manuel Carlos de viver. :)

    P. S: Você é fantástica. Escreve com alma e afinco.

    :)

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